De costas para o rio...

Quero questionar-me, questionando-vos. Adoro a Paz real, aquela que brota sorrisos... Quero cantar sentimentos, desafiar os olhares do coração... Quero contar consigo, na parceria desta viagem... Por isso não quero ir para o mar, quero procurar as razões que dão amor... e, dele fazer um canto louco de alegria...

Nome:
Localização: Barreiro, Setubal, Portugal

sou alguém que é feliz...

quarta-feira, junho 28, 2006

Ainda e sempre a minha áfrica...













Memórias do Charre...
Foi um pedaço da minha vida, que me marcou bastante, onde aconteceram factos que relatarei a seguir, que me ajudaram, e de que maneira, a amar aquele Moçambique tão desconhecido dos citadinos... Eu diria mais,tão desconhecido dos geitos das terras do interior sul... Os muros altos que circundavam o quintal, faziam-me cá uma curiosidade enorme, mas julgando que era "normal" calei-me, e nada perguntei. Iria sabê-lo de forma dramática. Numa das noites seguintes à minha chegada ao Charre, estava eu no meu quarto, a dormir profundamente, ouvi um som aterrador que jamais esquecerei! Um leão urrou mesmo debaixo da minha janela! Não sei porquê, disseram-me mais tarde que tal ousadia não era habitual, nem se lembravam de tal ter acontecido alguma vez, e se calhar havia um motivo: lá em casa somos todos do Benfica... O leão ficou junto da janela, enquanto as leoas saltaram o muro do quintal, e levaram com elas dois cabritos, que o meu pai havia comprado há dois dias. Assim, mesmo, sem tirar nem pôr. Dentro de casa, o pânico, era generalizado, que fazer? Ninguém tinha o hábito, de aturar leões àquela hora, sobretudo leões verdadeiros de juba e tudo... Mas, quando o meu pai agarrou a espingarda, uma calibre doze (!?), que só servia para assustar, com o barulho e pouco mais... os leões já haviam dado o golpe de mão, de pata quero eu dizer... o zurrar já era mais perto da serra do Murrumbala... Que experiência mais engraçada, para contar aos vindouros, sem a particularidade de "particularizar" aquele susto e meducho tremendo... de tremer mesmo!
A segunda experiência leonina, deu-se numa visita nocturna ao quartel. Estávamos a prepararmo-nos para regressar a casa, aí pelas nove e meia da noite, depois dum jantar de truz, na messe de oficiais e sargentos. Ouviu-se um estardalhaço enorme, uma algazarra e gritos de leão, leão! O que tinha acontecido? Simples, um leão velho, cheio de fome "ousou" saltar o muro do quartel, filar um dos burros usados, para ir buscar água ao Zambeze, e voltou a saltar com ele filado, para o lado de fora... Vejam a força... se o Sporting sabe... Planificou-se logo uma caçada ao leão, que essa desfeita aos militares iria ficar cara. Claro que participei, caladinho, no "jipe" Willis da veterinária, mais a minha mãe e irmã, com um oficial de guarda costas, para o que desse e viesse. Procurou-se tudo, com focos de longo alcance, alimentados por baterias, percorreram-se os caminhos todos à volta, e nada! Entre a estação de Mutarara e o quartel, nada! Não podia estar longe, dizia-se à boca cheia, um leão velho, solitário, com um burro "às costas" não podia estar de facto longe! Às duas da manhã desistimos, a derrota por nove a zero era um facto, viva o sporting! No dia seguinte o mistério desfez-se. O leão transportou o burro, para debaixo duma ponte, pertinho da estação, na linha para o Malawi, depois do cruzamento com a de Tete, e ali paulatinamente comeu o que lhe apeteceu! E, nós que estivemos em cima da ponte, com algazarra e tudo! Ah leão, que até se terá rido e tudo! A terceira história dum leão, que enriqueceu a minha experiência de vida, dá-se no Charre, na aldeia indígena (como se dizia, então...) onde um leão velho roubava comida, e punha aquela gente em pânico... Havia que fazer alguma coisa. O Ivo da Silva, planificou uma espera. Tudo na aldeia estava preparado, para o leão entrar e seguir para o centro, onde se tinha posto carne crua (uma perna de vaca). O corredor era claro, só por ali se poderia prevêr que ele entrasse. Todo o mundo estava armado de varapaus e latas para fazer barulho, e as armas de fogo, Ivo da Silva e Gil, no fim da sequência normal do circuito. Só por ali poderia passar... Bom, o leão veio, entrou por outro lado, apanhou um porco no curral, e aí, descoberto, todos correram para lá, desordenadamente, o que evitou os tiros para não haver acidentes. À passagem pelo cordão humano o leão, não usou de garras (senão teria inexoràvelmente morto a pessoa) pôs apenas a pata em frente, no peito do homem que tinha à sua frente, como a dizer "deixa-me passar", e foi... O homem ficou com quatro costelas partidas, mas sobreviveu...
O chefe duma aldeia próxima do Charre, cujo nome me não recordo, para o interior, a caminho da Morrumbala, veio pedir ajuda, ao Ivo da Silva. Um leopardo, lançava por ali o terror, roubando comida e já havia atacado dois velhotes e uma criança, que só escaparam, embora com ferimentos importantes, porque a aldeia estava perto, e os gritos, que se fizeram sentir o espantaram. Caçar um leopardo solitário, "viciado" em roubos fáceis, sempre com êxito, requer alguma paciência e muita esperteza, diria mesmo astúcia. Armaram-se várias armadilhas, ligadas a correntes, que por sua vez se ligavam a troncos grossos e pesados, para aguentarem o embate. Foram armados em sítios combinados, para não haver acidentes, porque são armadilhas que agarram mesmo. Ao fim de quase duas semanas o bichinho, um leopardo bem adulto, como se nota pela foto caíu numa das armadilhas. Vieram chamar o Ivo da Silva, um domingo à tarde, depois dum almoço, onde nós participámos, com uma ementa baseada nas célebres galinhas da Morrumbala. Fomos todos vêr o leopardo, e o Ivo filho e o Gil, das Alfândegas, armados de espingardas de bala, bem diferentes daquela que na foto seguro (calibre doze de cartucho...). Enfim, já se conjecturava a forma de disparar para se aproveitar a pele, etc... Chegados ao sítio, primeiro agarraram nas máquinas fotográficas e, escolhiam-se os ângulos mais favoráveis para as fotos da praxe... selva africana... leopardo... enfim, aquele sentir da superioridade que o homem revela, para se manifestar o rei da natureza... e, o seu maior predador, também, que em circunstância nenhuma se esqueça. O Ivo da Silva, pai, preocupado, experiente nessas andanças, mandou acabar com o espectáculo e o leopardo foi abatido. Descobriu-se depois que, desde que foi apanhado, se tinha entretido a roer a pata presa, para se libertar... e, estava quase... se isso tivesse acontecido, alguém iria "pagar" aquela prisão, certamente. Assim, à primeira vista, tudo nos parece cruel, desde a utilização das armadilhas proibidas, até ao desenlace fatal, mas conviria não esquecer que o animal, fugiu dos seus hábitos normais e estava a perturbar a aldeia, de forma perigosa... O inhacoso que deu a carne à prisão do leopardo, também ele vítima desta cadeia de vida, que dolorosamente ali se desenvolve, e que se aprende em contacto com a selva. Da minha experiência, de tenra idade, fica-me a certeza que os que ali viviam, defendiam a fauna, só abatendo por necessidade. Essa foi a minha primeira grande lição de vida. Selva que me entrou por mim "adentro", como dizia, Henrique Galvão, no seu livro sobre as caçadas em Angola, e sobre o amor que sentia pela fauna, á medida que a conhecia e contactava com os valôres que, ali se respeitavam... E, foi assim que comecei, mesmo, a amar em profundidade o meu Moçambique.
A vida social no "mato".
Introdução
Só quem não conheceu a vida no "mato", estranhará o tipo de amizade, e solidariedade humana que se desenvolve, entre as pessoas que, por esta ou aquela actividade, tiveram, eu diria, a felicidade de têr tido essa experiência. A vida era difícil, os recursos por vezes escassos e muito distantes, mas a tal solidariedade matava tudo isso, na maior parte dos casos. Começava-se por lamentar a pouca sorte do destino, para depois se chorar na despedida. Só assim, pouco mais de cinquenta (50) anos depois, um jovenzito de oito para nove anos, se recorda com saudade do tempo escasso que lá viveu - dez meses! Moçambique, marcou os seus cidadãos, marcou aqueles que tiveram a felicidade de lá viver, desprovidos de ideias coloniais. Tiveram, eu diria o seu prémio! Como era bom sentir a pujança do ser humano! Nunca mais voltei a sentir, com aquela intensidade. Oh Moçambique, bem hajas...
As visitas...
Como era hábito, todos os vizinhos se visitavam, isso tornava a solidão menos agreste e o serviço menos castigador. Com temperaturas acima dos quarenta graus, por norma, durante muitos meses, a jorna era fortíssima. Por isso as noitadas, até às onze da noite, no máximo, eram frequentes. Os dias começavam cedo, mas jantava-se às sete horas! Lembra-me no Charre, as visitas aos Ivos da Silva, casa de recepção fidalga e prazenteira. As visitas aos Morgados de Tamantine, a caminho da Markka. Era uma alegria! Ao Gil, da alfândega, em nossa casa e, naquela aldeia e arredores, todos se juntavam em harmonia. E, depois havia os fins de semana, sobretudo os domingos...
O Clube Ferroviário de Mutarara (velha)
A importância do clube era determinante. Ali se jogava ténis, se jogava Bridge, King, Sueca... e bailava-se todas as tardes de domingo, com um conjunto maravilhoso, muito conhecido "GIRA DISCOS" com as músicas mais actuais e ... aquelas que não perdem idade, e ganham na intensidade do sentimento... Pois, eu era miudo e sabia que a festa ia até às dez da noite, e havia o regresso ao Charre. A viagem de volta, envolvia cuidados, pois para se não dar a volta por D.Ana e Baué, íamos pela serra cortando caminho, mas com mais um carro pelo menos, por causa dos leões. O nosso jeep Willis era de capota de lona, e se por acaso avariasse, ou furasse um pneu.... era um sarilho dos antigos... Normalmente era o Ivo da Silva (filho) que nos acompanhava, e por isso tudo bem... Em Mutarara (velha) o primo do meu Pai, Joaquim Brites, chefe da Revisão de Material dos CFM, tinha lá a sua casa no bairro do Ferroviário, que distava da Mutarara (nova) bairro civil, onde ficava a Administração do Concelho. Atenção, malta de Inhambane, o primo do meu pai foi depois transferido para lá, e a minha prima (filha) Fátima foi aquela piloto aviadora do Aeroclube que aterrou na estrada de Inharrime - Maxixe por falha de motor...
As minhas coordenadas...
Sempre que me recordo destas maravilhosas paragens, ( com a maravilhosa ajuda do meu Pai, que tem uma memória fabulosa - 91 anos bem vivos, graças a DEUS) não deixo de me situar, no Charre, naturalmente, no rio ZIU-ZIU mesmo perto de minha casa, no Baué, D. Ana, Mutararas, Dondo, Port Herald, Markka, Tamantine, nos chocolates que se compravam no comboio da TZR, em dia de são comboio, nas caçadas aos crocodilos no Zambeze, mas sobretudo das pescarias com os meus amiguinhos do Charre, onde vivi belíssimos tempos.
Conclusão
São momentos que não esquecerei. De facto, ali vivi e compreendi a cultura de um povo, as suas diferentes formas de se relacionarem, mas sempre admirando o seu caracter, a sua forma pacífica de aceitarem a nossa presença, e o orgulho de presenciar que a grande, grande maioria, dos portugueses se portavam como seres humanos maravilhosos... Havia excepções que não quero sequer recordar, e nunca o farei... Se fosse possível agradecer àquele povo fá-lo-ia agora com muita emoção...