Crónicas de Férias (continuação) II
CRÓNICA DE FÉRIAS II
A VACINAÇÂO DE GADO...
Uma breve explicação, do que é de facto uma vacinação, muito reduzida, porque não sou especialista na matéria, uma explicação dum observador, para leitores também sem conhecimentos técnicos. A vacinação de gado, fazia parte das atribuições profissionais do meu Pai. Para mim era fascinante assistir ou, até colaborar. O médico veterinário responsável, chefe dos serviços, vinha de Magude ao encontro do meu pai, a cerca de quarenta quilómetros, mais ou menos a meio caminho. Nesse local, havia uma zona “especial”, dum tanque carracicida, preparada para vacinações. Para ali convergiam neste dia cerca de mil e duzentas cabeças de gado de vários criadores, uns indígenas (vacinação gratuita) e outros colonos (vacinação paga). Era um mar de gado bovino, e nenhuma cabeça se perdia do seu agregado. Cada agregado tinha os seus pastores, com os seus cães ladinos, dos quais se distinguia um, que era o mais responsável, a quem os bovinos “bem conheciam”. Bastava que ele assobiasse, e todo o seu gado logo respondia. Dum grande curral partia um “corredor”, por onde o gado teria de passar, um espécie de estreito, onde não havia espaço para “movimentos bruscos”. Ali, quer o médico veterinário, neste caso específico, o meu querido amigo dr. Costa Neves, e o meu “velhote”, injectavam cada bovino, com as respectivas seringas automáticas. No caso daquela vacinação, uma injecção sub-cutânea, que não me recordo se contra carbunculos, febre aftosa ou brucelose... Vacinavam entre mil e cem a mil e quinhentas cabeças de gado, entre as seis da manhã e o meio dia. E, a cena repetiu-se.
Levantámo-nos da cama às quatro da manhã, para encetarmos a viagem ao encontro daquela cena profissional que se foi repetindo, ao longo da vida do meu pai. Tudo estava combinado, ensaiado e funcionava. A minha Mãe sabia o que fazer, o lanche para a viagem, os pequenos almoços antes de sair, só que desta vez com o acréscimo da minha parte. Por mim, até havia um bolo de chocolate e amêndoa, que nós, pai e filho, e o dr Costa Neves, tanto gostávamos. A viagem sempre repleta de surpresas, com o caminho cheio de coelhos vagabundos, que se encandiavam com os faróis, com uma ou outra impala, nhalo ou kudu, apressado, no meio das micaias, uma ou outra galinha do mato, perdizes empoleiradas na árvore do seu “casulo”, ou mesmo duma giboia a atravessar a estrada, na sua incessante busca de alimentos p’rá semana. Ao raiar do dia, eis que o espectáculo se adensa, como que as cortinas do mega teatro se abrem e o Criador apresenta a sua gloriosa criação africana, uma fauna diversa, linda e colorida. Entram em cena os pequenos cantores, de penachos coloridos, entoando as melodias da aurora, a alegria da celebração da sobrevivência, um novo dia a ser acrescentado às suas vidas, que a cadeia alimentar funciona também, diàriamente e é implacável nas suas regras. O crescendo do espectáculo, enche-nos de vida, e a admiração da beleza daqueles raios de sol, a desbravarem a noite, rasgando-lhe as entranhas num bailado sempre repetido, para no grande final, surgir por sobre as copas das árvores, trazendo luz e calôr, como só áfrica tem e dá generosamente. Este mega espectáculo, que se repete em tons sempre diferentes, com os efeitos do cacimbo, por vezes, a tentar impedir a invasão do sol ràpidamente, prolongando o tempo de manobra, dos predadores da escuridão, é realmente único e majestoso. D’áfrica tenho esses registos dos “nascer do sol” que me fascinaram sempre, até mais que o pôr do sol. Talvez porque a “música” seja outra, a alegria de viver, da sobrevivência Os cantores protagonistas primeiros dessa rara alegria da manhã, as aves, no seu incessante clamôr num hino à vida e à liberdade, executam com maestria, nota a nota, dia após dia, a sonata mais linda que conheço.
Chegámos finalmente ao local, onde o som era outro, o "falar dos bovinos" algo assustados. Os encarregados locais, já tinham organizada a sequência, consoante os locais de vinda, para prevenir um regresso das cabeças de gado à água e às pastagens, o mais rápido que fôsse possível. O Dr Costa Neves chegou entretanto, e depois das saudações, montado o esquema, não havia tempo a perder. Sempre num encadeado bem marcado, por um ritmo impressionante, os nossos protagonistas iam cumprindo as suas obrigações. Apenas uma chamada de atenção, para o facto de que, tanto me custa ouvir dizer que em Moçambique existia apenas colonização, que se não trabalhava, aqui fica o meu protesto. Tantos profissionais, com ordenados de função pública, prestavam ao povo moçambicano estes serviços essenciais, no interior do mato, trabalhando das quatro da matina ao meio dia, sem descanso... Eu diria, professores primários, administrativos, ajudantes de pecuária, vetrinários, médicos, enfermeiros, e quantos mais, que a história, a cumprir o percurso que está a fazer, deles fará apenas uma leve referência. E, os privados? Cantineiros, machambeiros (agricultores), criadores de gado, feirantes, sei lá que mais, verdadeiros elos de mercado permanente, essenciais ao desenvolvimento daquelas gentes, única via instalada para a civilização. Via ainda hoje não restabelecida, infelizmente.
Mas continuemos o dia. Eram doze e trinta quando o último bovino foi vacinado. Ouviu-se o assobio característico daquela manada, e todas as cabeças olharam o capataz para saberem a direcção a tomar. E lá foram à vida.
Fomos almoçar a casa dum criador, e lembro-me dum facto hilariante que aconteceu, assim que chegámos. A esposa do criador, vendo as caras cheias de pó do doutor e do meu pai, sobretudo, interpelou o dr. Costa Neves dizendo-lhe:
- Senhor dr. está tão empoeirado, não quer um copo de água gelada? Resposta pronta:
- Se por acaso tiver um pouco de whisky para desinfectar a água, eu agradeço...
Foi numa boa disposição evidente que nos preparámos para almoçar um bom e apetitoso cabrito assado no forno... Depois de muitas conversas naturalmente sobre caçadas e feitos de gente do mato, habituada àqueles ambientes de vida natural. Que bom! Como posso esquecer?
O regresso foi assim como, um voltar da festa, com cansaço, mas misturado com o sabor de algo muito bom, que ainda permanecia em nós...
O "stop" festejou o nosso regresso logo no quintal. Mamãe tinha já o jantar pronto, canja de galinha e frango frito com arroz branco, e molho de tomate com piripiri, papaia e café de termos...
(Continua)