De costas para o rio...

Quero questionar-me, questionando-vos. Adoro a Paz real, aquela que brota sorrisos... Quero cantar sentimentos, desafiar os olhares do coração... Quero contar consigo, na parceria desta viagem... Por isso não quero ir para o mar, quero procurar as razões que dão amor... e, dele fazer um canto louco de alegria...

Nome:
Localização: Barreiro, Setubal, Portugal

sou alguém que é feliz...

quinta-feira, novembro 10, 2005

A palhota Maticada

A palhota Maticada
Saímos de madrugada da cidade, duma LM ainda adormecida, prestes a acordar e começar a correr nos labirínticos corredores de sempre, na luta diária, programada e ciclicamente cumprida, com desvelo, preguiça... e sono. Sono, também tínhamos nós, nada que não pudéssemos assustar com um café no Manuel Rodrigues, mai’la rocha do costume. Em viagem, numa viagem de todo previsível aí seguimos nós, eu o Soares Ferreira (que Deus o tenha) e o Roseiro, ambos dos CFM (eu estava como passageiro em férias) que iam escolher travessas de madeira para as linhas dos ditos comboios. Duzentos e picos quilómetros depois, eis-nos a chegar a Manjacaze, para o almoço. Confesso que estava com fome. Da ementa comemos o frango à cafreal da casa, pintado com um molho de piripiri, que segundo a D. Amélia, era segredo da casa. Eu não sei se era mesmo segredo, mas que era divinal, era, e isso não era segredo nenhum. Depois de almoço, com o tanque do jipe Land Rover, de capota nova, cheio de gasóleo, iniciámos a etapa final até à Serração Mecânica. Competia-me a mim conduzir agora. A estrada de terra batida primeiro, enquanto foi a que ia para Homoíne, para depois do cruzamento, seguirmos finalmente por uma outra, um pouco melhor que picada. A primeira fase, de savana e baixios, como a lagoa do “Estonhana”, com matope e água nos rodados, das chuvas da semana passada. Só por uma vez usámos a redutora para a tracção às quatro rodas. De repente, eis que o mato selvagem nos saúda, dois corpulentos “nhalos” machos e umas quantas fêmeas assustadas abalavam savana fora, naquele correr elegante e suave, qual bailado de opereta, em saudação à vida livre e natural. Parando mais adiante, debaixo duma micaia, das que despontavam aqui e ali, no capim, ainda verde, da altura do joelho, escutavam os ruidos alheios àquele mundo maravilhoso. Era a recepção da malta naquele ambiente especial, que o citadino não poderia entender. Aquele quadro, dos “nhalos” não era reproduzível, por nenhum cenógrafo por muito bom que fosse! Aquele cheiro, aqueles sons, aquela paisagem, aquela luz radiante, a alegria de viver, que nos era mostrada pelo cantar da passarada, do saltitar das perdizes, que depois de desvendado o seu camuflar, ensaiavam longos voos a perder de vista. As galinhas do mato, tontinhas e previsíveis, mas rápidas no esconder nas matas, e de voo mais difícil, tipo Jumbo 747 com a carga toda... Mudámos depois para estradas de areia. Mato de árvores de porte mais forte, terreno de cultivo de mandioca, amendoim, e nos intervalos de ananazes. Claro que comemos ananazes, sem geito nenhum, pois só tínhamos um canivetezito... mas a vontade era mais forte que tudo... Coisas de citadino no mato. Apenas me era devido uma crítica, porque afinal, eu tinha sido criado no mato e tinha obrigação de saber do que fazia geito ali. Mas estas peripécias coloriram uma viagem maçadora em termos físicos, mas muito compensadora e enriquecedora sob todos os outros aspectos, e stress (?) que é isso? Chegámos à Serração Mecânica e distribuiram-nos os aposentos, e alguém teria de ficar fora do edifício numa palhota maticada. Aceitei logo essa hipótese, que me foi concedida. Finalmente iria viver durante quatro dias numa palhota. Ambiente fresco, cheio de mistério, mais imaginado que real, mas que eu cultivava, pois queria sentir o pulsar de áfrica ali dentro, daquela habitação própria. Arrumei as “timpachas”, tomei um banho e preparei-me para o jantar na serração, com todos à mesma mesa.

A Palhota Maticada II
Com tudo arrumado, banho tomado, segui para o edifício principal, onde se seguiria o jantar. Refeição para trabalhadores, que a mim me servia perfeitamente, era “teenager” inocente, e comia bem... Lembro-me, que o prato principal, era cabrito assado no forno. Depois do café, assisti a um jogo de cartas de “alto nível”, uma suecada das antigas... Falou-se um pouco de tudo, de futebol, de caçadas, principalmente, com os exageros dos tiraços certeiros... Não são só os pescadores... Porque a manhã. iria ser madrugada, fui para a palhota, experimentar a sensação nova, que tanto me estava a entusiasmar. Mesmo radiante, e excitado, pouco tempo depois, adormeci. Quando de madrugada me acordaram, para visitarmos o corte na floresta, senti um bem estar enorme, de quem havia dormido descansado, oito horas seguidas. O pequeno almoço na serração era uma coisa muito séria. Bife com ovo e batas fritas, sumo de laranja, café com leite, pão, manteiga, queijo e chouriço... E, a fruta, papaia, laranjas ou mangas. Isto ás seis e meia da manhã! A viagem até ao lugar do corte, foi penosa e cheia de percalços normais, em terras arenosas, por sulcos enormíssimos feitos pelos rodados dos monstruosos camions, de transporte de troncos, que por ali andavam, como reis da paisagem. Por vezes, fazíamos nós um novo caminho. Mais adiante, outra savana com capim baixo e terreno lodado e por vezes seco e duro. Criando novos rumos para fugir àqueles sulcos, por entre o capinzal, corríamos o risco de encontrarmos pelo caminho um morro de formigas (muchein) que nos poderia fazer voltar o jipe, porque ali, compensávamos o tempo, acelerando um pouco. Chegados ao local de corte para que fossem escolhidas as árvores para as travessas, os inspectores fizeram com minúcia o seu trabalho. O almoço em serviço, foi composto por sandes diversas, vinho, águas, e laranjadas e cocacolas. Só ao final da tarde iniciámos o regresso. Quase a chegar a casa, conseguimos caçar umas perdizes, que serviriam como petisco delicioso acompanhado com uma laurentinas bem frescas. O jantar de fim de jornada, após o banho retemperador, foi divinal. Era dia de bacalhau com batatas e couves... O serão foi curto para os citadinos pouco habituados àquele ritmo. Regressei enfim à palhota para voltar a dar azo à imaginação do sentir ali, a alma de áfrica. Abri a janela, única, deixei apenas a de rede fechada, para ouvir os sons tão característicos da incomparável noite africana. Nem um mosquito, nem uma aranha, aquela palhota era um paraíso. No dia seguinte era dia de serração, isto é, não haveria saídas para o exterior, e depois era sábado, o ultimo dia de campanha, já que o regresso estava marcado para domingo.

A Palhota Maticada III
(O Mistério desvenda-se...
Dormi como um justo ao som da partitura do “Nocturno” de África... Acordei, recomposto do esforço da véspera, e até cheguei atrazado ao pequeno almoço, com aquela ementa fortíssima, agora ás oito horas, já com o sol a aquecer tudo e todos. Como para mim era dia de folga dei uma vista de olhos pela serração, onde aqueles toros bem pesados e grossos, eram transformados em lâminas grossas (tábuas), que partiam por caminho de ferro até Manjacaze e posteriormente para o mundo. Visitei a escola primária para os filhos dos trabalhadores, e vi as dificuldades que um professor vindo da “metrópole”, directamente para ali, para entender aquelas crianças adoráveis, que não entendiam o que dizia o professor porque não “dominavam o português” que ele falava... Lá lhe expliquei que só com aulas suplementares de português levaria a água ao seu moinho. O Luis Ferreira da Silva assim se chamava o novato professor, confessar-me-ia quarenta anos mais tarde, que aquela experiência, ali no mato, tinha sido algo de tão maravilhoso que nunca poderia esquecer na vida. Fizemos uma amizade forte que ainda hoje perdura, e sou o padrinho de casamento, que deu três maravilhosos frutos, uma rapariga, médica, e dois rapagões, um piloto (sr. Comandante) e outro um informático de truz... Ainda hoje recorda a Serração Mecânica, aquele isolamento, que mais tarde receberia a esposa, vinda de Viseu... Mistérios de áfrica que citadino tem dificuldade em entender.
Passei o dia numa experiência pedagógica interessantíssima, vi como funciona uma indústria de madeiras na sua raíz... Mas o melhor estava para vir... O almoço foi um arroz de cabidela genuino, com frangos criados na rua (no mato), que não esquecerei nunca mais. À tarde depois da sesta, naquela palhota de sonho africano que tanto me fascinava, fui participar numa caçada que demorou até ao jantar. Era a oferta da casa, aos que buscavam uma maneira de contar aos amigos, que tinham... feito uma caçada! Não fomos longe e conseguimos caçar umas peças de caça habituais naquela zona: um nhalo e dois cabritos. O suficiente para motivarem longas histórias de convívio, lá na cidade... Á noite houve festa no último jantar da jornada. O rancho foi melhorado e havia dois pratos (!). Bacalhau assado e caril de cabrito... estavam fantásticos, o que motivou uma oferta generosa do Soares Ferreira à cozinheira... Tudo bem regado, foi um previlégio poder escutar histórias e mais histórias do mato. Salvo os exageros, sõ, foram e serão sempre uma lição de vida. Daqueles que deram a sua juventude por aquele país. Dizia-me o Luis que tem consciência de ter ensinado a lêr e dar o ensino primário, a centenas de garotos, ali nos confins do mundo. E, como isso hoje nem sequer é lembrado! Fui-me deitar mais rico e, sobretudo, feliz. Acordei de manhã já com saudades da palhota maticada. Estava nesta angústia da partida, deitado, olhando para o teto, quando de repente vislumbro num dos paus de suporte do tecto uma cobra! Eu sei que existem cobras “domésticas” que os africanos usam para limpar de insectos e ratos as suas palhotas... mas aquela era ou não dessas? Saí, a medo, e procurei o primeiro moçambicano que encontrei, o ajudante de cozinha, e questionei-o. Foi vêr e explicou-me que poderia ficar descansado que nada me aconteceria. Aliás ela estava já a retirar-se para o seu poiso. Deixei de a vêr, arrumei as coisa (timpachas...) retirei-me saudoso daquele lugar. Foram as despedidas e o regresso a Lourenço Marques. Mas, ainda hoje me lembra que convivi com uma cobra, partilhando a mesma palhota, e quiçá absorvendo aquele ar misterioso, aquele feitiço que África exerce em todos os que com ela convivem. Moçambique em particular, dobra,, acho eu, esse fascínio. Não esquecerei mais aquela palhota maticada...
Dedico esta memória ao Luis e a todos os que deram o melhor da sua vida, a juventude, por aquele Povo e aquela terra...

18 Comments:

Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Olá Ricky

És um contador de histórias incrível.

É uma verdadeira delicia, da forma como escreves - quase que toco nas coisas de tão perto que fico delas através das tuas palavras - os cheiros e as cores essas já cá estão - estão envolvidas na história do principio ao fim.

Fico sempre sob um encanto - como um manto de chuvinha morna que flutua entre o céu e a terra.

Beijinhos

2:50 da manhã  
Blogger José Gomes da Silva said...

Ao vir agradecer a visita, deparei com um blogue excelente, no qual hão-de ser gastas seguramente mais umas fatiazitas de tempo da minha vida.

Passei mais de dez anos em sucessivas viagens, em mais de 30 paises, desde as Caraíbas a toda a Europa e parte da Ásia. Em África nunca estive.

Mas através destas óptimas descrições começo a sentir-me espreitar à porta da minha cubata e a experimentar o poder da sua grandeza, entrando-me pelos sentidos, mesmo que eu não o quisesse.

Obrigado

1:30 da tarde  
Blogger vero said...

Olá Ricky
Venho agradecer as lindas palavras que deixaste lá no meu blog...gostei muito...muito mesmo!!!
Beijinhos para ti e BFS***

2:26 da tarde  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Venho agradecer a visita e a promessa de retorno feitas no "BEJA". Aproveitarei o fim de semana para conhecer bem essas histórias que nos conta.

Um bom fim de semana.

3:00 da tarde  
Blogger isabel mendes ferreira said...

rESSALVAR A MEMÓRIA É BEM NECESSÁRIO hENRIQUE E AQUI FÊ-LO DE UM MODO MAGISTRAL. pARABÉNS. E BOM FIM DE SEMANA.

3:06 da tarde  
Blogger mfc said...

O modo como nos contas essas aaventuras é tão realista que chegamos a sentir até o cheiro do cacimbo!
É reconfortante ler alguém que escreve bem, que não se vê muito por aí...

6:23 da tarde  
Blogger Manel do Montado said...

Na sê por som nesta porra, se sobesse agora estavas ovindo as minhas palmas, por tudo, porra!
É homem, tive junto a ti, a caminho da terra do gigante, lembras-te dele?
Era eu "mufana" fui vê-lo à Facim, que saudades. A ele e à baleia Jonas.
Ó homem de Deus põe-te a escrever isso em livro, pois da forma como o fazes já me levaste a fazer copy-paste e a ler isto de seguida (tudo) em papel e vou-te confessar uma coisa, "em directo":
- Puseste-me uma lágrima no canto do olho, como canta o angolano Bonga!
Quando referes os cheiros, os sons, o tagarelar dos contadores de histórias que são também a História de um Portugal que já não existe, o sabor do caril de cabrito como eu comia em casa da Dona Salomé, senhora indiana que, espero, vive para as bandas de Coimbra, estás a reavivar sensações e emoções que já não sentia há maning (muito) tempo.
É que sabes, também eu fui às caçadas com os amigos do meu falecido pai, esse grande amigo da minha vida, tendo também dormido numa palhota maticada com o chão de terra batida, lá para as bandas de Vila Pery.
E o matope? Tens de fazer a tradução porque sei que há malta que te lê (ex: o meu filho mais velho), que está sempre a perguntar-me o que é isto ou aquilo.
Grande texto, que ritmo de descrição e excelência. Este é dos tais textos que ilustrariam a qualquer mortal que nunca tivesse estado em África, o que ela realmente representa.
Um abraço daqueles, hein?

7:11 da tarde  
Blogger aDesenhar said...

olá ricky

uma forma de escrever que nos envolve,
transportando-nos para dentro de cena :)
um cheirinho a Aquilino Ribeiro e a Miguel Torga :)

:)
bom fim de semana

7:17 da tarde  
Blogger Vespinha said...

Olá!!

Obrigada pela visita lá no Vespeiro!

Gostei de passar por cá! :)

Vespinha

8:33 da tarde  
Blogger Português desiludido said...

Ricky. É tão fiel a tua descrissão que nos sentimos a fazer essa viagem
1 Abr e continua
Pedro

4:35 da tarde  
Blogger Isabel Filipe said...

uma viagem que eu já tinha lido...mas que gostei de reler...

fanei-te a foto este Post...talvez a utilize num trabalho meu...


bom sábado...

bjs

4:46 da tarde  
Blogger Leonor said...

ola ricky
estive a dar uma olhadinha nas fotos.
formidaveis. lindas.

quanto as descriçoes, fantasticas.

obrigado pela tua visita ao ex improviso e ao teu comentario que tanto me eleva o ego.

abraço da leonoreta

4:57 da tarde  
Blogger Caracolinha said...

Olá Ricky ... venho agradecer a simpatia das palavras deixadas lá na casquinha e convidar-te para voltares sempre que quiseres ... a minha casca é a vossa casa !!!! :)

Beijinho encaracolado :)

9:38 da tarde  
Blogger lena said...

tão real que entrei nas tuas palavrs, senti o cheiro e imaginei-me de novo em África

adorei ler

beijinhoss

lena

11:50 da tarde  
Blogger Menina Marota said...

Uma excelente narrativa, que nos transpõe para lá do horizonte de um Mundo onde o sonho ainda é permitido.

Grata pela partilha.

Um abraço ;)

4:00 da tarde  
Blogger Henrique Santos said...

Meus queridos,
Estive ausente e só agora vos agradeço:
BETTY
Obrigada és sempre entusiasmante para mim, porque me "obrigas" a fazer sempre melhor... Bjinho
O FURÃO...
Não foste indiscreto, Zé (posso tratar-te assim?) as tuas palavras calaram fundo. Acho que deves visitar África com urgência... respira aquele ar único, contempla aquela paisagem... Um abraço
VERO
Fui verdadeiro... ainda bem que gostaste...
LUMIFE
Já lá voltei a BEJA... obrigada

MENDES...
Obrigada pela visita e pelas palavras...
MFC
Cacimbo? De manhã cedinho... Obrigada pelas palavras...
MANEL...
Eu ouvi, porra, nã foi preciso o som para nada porra! Obrigada, és generoso e eu fico assim a modos que a precisar duma açorda alentejana... das genuinas que eu gosto à brava... Tal está a muenga...
Um abração forte...
ADESENHAR...
Eh pá, fico sem palavras... Obrigada pelas palavras de incentivo. Humildemente agradeço... Um abraço
VESPINHA
Não levei ferrãozinho... oba! Obrigada
PECAAS
Obrigada amigão, as tuas palavras são ânimo grande...
ISABEL
Kanimambo... bjinho
LIANOR
Como sempre obrigada. Ainda bem que gostaste da minha crítica...
ROMERO
Muchas gracias, está correcto? Que dizer? Estou muito grato mesmo! Um abraço grande
CARACOLINHA
Obrigada pela visita, lá voltarei...
PALAVRAS...
Obrigada pelas tuas palavras... são um incentivo grande...
MENINA MAROTA
Obrigada por esta "marotice", e digo-te que áfrica tem sonhos admiráveis para serem vistos à luz do dia...
Obrigada a todos, Ricky

12:10 da tarde  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Ricky:
Na verdade tem o condão de tocar no mais íntimo dos nossos pensamentos e colocá-los a vibrar com o modo rápido e fácil de contar as suas "estórias".
Também tenho saudades de África e desejo colocar no papel as minhas recordações se a tanto me ajudar "o engenho e arte"...

Um abraço.

2:38 da tarde  
Blogger Desconhecida said...

Belo texto e esta foto é de uma evolvência fantástica!

9:32 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home