CRÓNICAS III
Os dias passavam em beleza, porque os contactos com a natureza, são sempre bem curtinhos, ou o tempo passa sem que o notemos, não obstante ser uma vida calma... Não há mistérios, é uma vida em oposição à do citadino.
A data da festa de Santa Quitéria aproximava-se, e em cada casa sentia-se isso mesmo. O Senhor Bispo vinha àquelas terras do mato Crismar umas dezenas de crianças. As senhoras estavam já a preparar, a sua dádiva de amor, à celebração daquela festa, que se realizava anualmente. Eram os bolos, os pudins, os arroz dôce, as geleias, os potes de doces de papaia ou de tomate (que delícia), depois as carnes, as “bôlas”... enfim, de criar uma nascente em cada boca.
Mas o que é uma Missão? A foto, porque não tinha a real, é de uma Missão algures em Moçambique, o que para este caso, nem é importante. Conviria ilustrar a extraordinária importância, das missões Católicas em Moçambique (as que eu conheço, mas penso que serão todas mais ou menos assim, em qualquer parte do mundo.). Para além da sua acção Evangelizadora, missão primeira, a acção de comunhão com as populações, vivendo em conjunto e partilhando saberes, na construção da sociedade, rumo ao futuro. As acções são múltiplas, desde a escola primária, onde eram (são) ensinadas as matérias que todos conhecemos, com uma suplementar, o ensino da língua portuguesa. E, os professores aprendiam primeiro a falar a língua local, para melhor se fazerem entender no início. O meu Pai, por exemplo falava (fala) e escrevia correctamente o Ronga e o Changane, cujas diferenças são muito pequenas. A miudagem feminina tinha aulas de valorização profissional, ou se se quizer formação feminina, com as Freiras, costuras, bordagens, culinária, gestão familiar, enfermagem, (parteiras) entre outras. Os rapazes eram encaminhados, para uma formação profissional, que visava preencher as necessidades da sociedade local. A carpintaria, o aprendizado de pedreiro (no sentido de construtor), o mecânico, o electricista, o agricultor (onde aprendiam a condução de um tractor), ou enfermagem. Numas Missões as particularidades eram estas, mas pode-se definir como geral a panorâmica aqui focada. Espero não estar a esquecer-me de nenhuma essencial. Mas, percebe-se bem a importância das missões católicas em Moçambique, o seu reflexo na evolução do País, a formação que pacientemente ao longo dos anos foi dada, com amôr e dedicação. Pena que a história, repito, passe ao lado destas acções que tantos, e tão bons frutos geraram, que não sejam divulgadas e reconhecidas de forma pública. Um Padre Silva, um Padre Modesto (que me casou), e tantos colegas que vi dedicarem-se de corpo e alma a estas obras, com um entusiasmo que não consigo definir por palavras. Que seria da vida naquelas paragens sem estas missões? Difícil... muito!
Estas descrições têm também o mérito, penso, de criar para vós o ambiente, que envolvia esta festa, com a visita de entidades civis e do Senhor Bispo. Todos queriam mostrar como ia a missão, e por isso se esforçavam em torná-la mais bonita e atraente com paredes pintadas de fresco (cal), ruas com enfeites de papel, os ensaios dos cânticos aprimorados. E que vozes ali se escutavam, no clamor a Deus em tons que só os negros possuiem, num verdadeiro “Godspel” de primeira água.
O dia finalmente chegou, embalámos as comidas, ainda não eram seis da manhã, porque queríamos chegar a tempo de nada perder da festa religiosa e social. Mas, não éramos só nós, o professor e o chefe de posto, também já estavam prontos e partimos em comboio. O nascer do sol colheu-nos logo no caminho, e como sempre um espectáculo fantástico. Quando lá chegámos, cada um foi-se oferecer para uma ajuda de última hora, sempre benvinda em todas as ocasiões, porque a azáfama era muito grande. Mas havia ajuda de todos além de que a Missão de Magude havia mandado reforços habilitados. De cantineiros a agricultores, criadores de gado, todo o mundo participava, doando coisas ou dando trabalho. A festa afinal era de todos. Hoje, à distância do tempo e do lugar, não posso deixar de me manifestar com saudade perante aquela solidariedade humana, séria, capaz de ultrapassar tudo, raças, proveniências, culturas, tudo! Ali não havia barreiras! Olho ao meu redor e entristeço-me! Profundamente. À medida que o tempo passava, a adrenalina subia, a ansiedade pela hora da chegada do Senhor Bispo, do senhor Administrador, e toda a caravana, era cada vez mais intensa. Com palmas e cânticos, como só em áfrica genuinamente se escutam, os anfitriões foram finalmente recebidos. Depois duma curta espera para descanso da viagem, eram onze horas, a Missa começou. Todo o cerimonial duma Missa solene já de si é marcante e vivida com uma disposição bem abrangente, então acrescente-lhe o Crisma daquelas dezenas de crianças vestidas de branco, tão inquietas quanto desejosas de viver aqueles momentos. Olhei-me como citadino, e senti-me pequenino. Ali, no meio do mato, Deus manifestava-Se com uma auréloa de glória que nos tocou a todos. Já tarde, cerca das duas horas, começou finalmente o almoço, sem lugares preveligiados, a não ser de alguns glutões que se dirigiram a locais “estratégicos” mas, disso, não falarei, como é obvio. Toda a gente conviveu e partilhou experiências, que não mais esquecerá, estou certo. Assistimos à despedida das entidades, com um recital de cânticos em tom africano forte. Será que Mozart alguma vez imaginou este tom?
Regressámos felizes por têr vivido mais um dia cheio e gratificante.
Por último a minha homenagem a todos os que ao longo dos tempos deram o seu melhor nestas missões ou noutras com o espírito proclamado no Evangelho, ou seja, de irmão para irmão. Assim, simples.
Obrigado!
(Continua...)
26 Comments:
E mais uma partilha que nos faz viajar pelas tuas belas memórias. Beijinhos :)
Olá amigo Ricky
Como sempre, são momentos de grande beleza que nos trazes.
Vivi uns anitos em Angola e outros na Guiné, e é sempre um regressae á infância, as tuas crónicas.
Obrigado Amigo
:))))))))))))))))))))
Abraçosss
≺ A New Day ≻
Sabes Ricky, a minha avó passou por Moçambique, por Porto Amélia e pela Ilha do Ibo, ler-te é quase como ouvi-la contar histórias, qd ela ainda era viva.....
Um beijpo grande, encontramo-nos lá no "Bar"..... :)
mar = teleri
Sabes Ricky, a minha avó passou por Moçambique, por Porto Amélia e pela Ilha do Ibo, ler-te é quase como ouvi-la contar histórias, qd ela ainda era viva.....
Um beijpo grande, encontramo-nos lá no "Bar"..... :)
mar = teleri
As missões, de ambas as religiões, tiveram um papel primordial na educação e sobrevivência de muitos moçambicanos. Fizeste-me lembrar os coros cantados como só eles o sabiam fazer...
Bjinhos
É TÃO BOM TE LER.Jinhos grandes
Tareca minina,
Como não tens blog, aqui te respondo, para te dizer que ouvi uns zuns-zuns que me não agradaram, nós não podemos passar sem a tua bondade, a tua doçura, a áura de personalidade boa que faz falta.
Volta sempre, este lugar é teu!
Bjinhos Ricky
Olá, Richy!
Mais um relato, e em que realças o espírito missionário em diversas comunidades africanas.
Gostei imenso de ler estas tuas lembranças!
um grande abraço,
Caro Ricky
Mais um excelente texto que, até a mim toca, apesar de ter estado em Moçambique só por imperativo militar....
"Continua de Costas para o Rio e de Frente para o Blog"
Abr
Querido Ricky
Tu sabes que me encantas com as tuas histórias.
Cheira-me a arroz doce - e o meu fruto perferido é a papaia :)
"Será que Mozart alguma vez imaginou este tom"?
Certamente que não. Embora ele tivesse imaginado outras maravilhas - que nos ofertou.
Obrigada pelas delícias que me "ofereces" nesta tua belíssima escrita... (memórias)
Beijinhos
Caro Ricky
Caros Amigos
Sempre que venho aqui fico agradavelmente surpreendido com os belos relatos que fazes de Moçambique, de saudosa memória!
E agora das tradicionais Missões Católicas...
Quantas saudades, meu Deus!
Das Missões do Norte, do Centro e do Sul, mas sobretudo as do Mato, as dos lugares quase inóspitos (materialmente falando), porque de desertos não se trata, mas de quase Céus na Terra, totalmente anti-guerra!
E ainda há quem diga tais coisas (cobras e lagartos), autênticas blasfémias, desses bravos Missionários do Mato do tempo da Outra Senhora!
Tenham juízo, "padres brancos" (de coração de breu), traiçoeiros e ingratos (melhor dizendo), como hoje mais que nunca em todo o lado acontece!
Caiu o muro da vergonha ( o muro material), mas ficou o muro do descaramento e do deboche, o muro da hipocrisia, do comodismo e do oportunismo, da heresia e do modernismo, muito pior ainda que o próprio comunismo!
Que saudades tenho das Missões tradicionalistas de outrora, tanto no Além-Mar como no Aquém-Terra!
Mas isso agora infelizmente já não se fabrica, nem sequer na maioria da actual Igreja que temos, também se calhar por culpa da maioria de todos nós, portanto aquilo que merecemos...
E mais não digo, por agora. Desculpa lá este desabafo, assim como os demais que tiveram paciência pra me ler.
Um abraço política e religiosamente incorrecto, segundo a autêntica Lei de Deus e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, que Igreja autêntica, Una e Santa, só há uma, a da Santa Sé Conservadora e mais nenhuma.
"Deus e Audácia"!
José Avlis
Cheguei aqui atrav�s do 'Nova Evangeliza��o Cat�lica'... e ainda bem!
Vou voltar!
adoro ler as tuas vivências em terras que também pisei e como sinto saudades a baterem à porta, saudades de quem ainda consegui manter viva em mim muitos momentos passados por caminhos idênticos a esses, com passagens semelhantes
encanto-me sempre que passo por aqui
beijinhos meus
lena
Ricky,
Um dia havia de ser!
Aqui estou a fazer-te uma visita e agora aqui me vais ter com periodicidade.
Não te esqueças que és um dos culpados por eu começar a blogar.
Um grande abraço,
Manel
Apenas para deixar um beijinho e desejar-te um bom fim de semana :)
Uma passagem para ler um pouco e desejar um bom fim de semana.
Bom FDS querido Ricky...
Beijinhos***
Nunca estive nas Missões mas pelo que tenho ouvido a muitos missionários elas são oásis de amor e bem-fazer.
Obrigado pelo teu texto.
Belo texto!!! Parabéns pelas palavras de gratidão a todos os que deixaram suas terras e foram ajudar gentes pobres e carentes de tudo.
Um abraço e bom fim de semana.
OlÁ Ricky,
Passei e deixo-te um abraço de um excelente fim de semana!!
Abraçosss
:)))
Companheiro,
O que aqui e agora te escrevo não é um agradecimento pelos comentários e incentivos que deixas lá no meu canto. Creio que o que nos narras, de um ponto de vista estritamente pessoal, deveria passar a livro pela simples e única razão de que constitui um património pessoal, cultural e humanista que a GRANDE maioria das pessoas conhece, uma vez que a sua ideia de África é aquela dada pela retórica liberal escandinava e pela socialista/comunista.
Quem ler e somente atentar no que estes senhores nos propõem, sobre o conhecimento da presença portuguesa em África conclui que fomos, enquanto povo, uns colonialistas carniceiros e exploradores que somente massacraram e oprimiram as populações locais. Como sei que a tua vivência, embora mais rica que minha, corresponde a uma realidade que, de forma mais mitigada, também conheci, resta-nos em bom abono da consciência histórica colectiva passá-la às gerações que nos seguirão, de forma a que não sejam simples manuais tendenciosos a contar-lhes uma “verdade” que nunca aconteceu.
Um abraço maning strong
Uma visita para ler e reler e desejar um bom fim de semana.
é assim que eu vejo africa. como a contas.hoje faço um ano de blog.quero que me ajudes a apagar as velas
abraço da leonoreta
adorei ricky, adorei.
vim ver se já havia continuação, como não há, deixo-te um beijinho meu e fico à espera
beijinhos meus
lena
Passei para te deixar um beijo e um :))
Beijinhos
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